A Professora Dra. Rosita Saupe fez um lindo depoimento contando sobre como tudo começou na articulação com Paulo Freire. Veja a seguir o depoimento completo.
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HOJE É DIA 31 de Janeiro de 2021!
Em 19 de Setembro celebraremos o centenário do nascimento de Paulo Reglus Neves Freire, Patrono da Educação Brasileira: advogado, educador, filósofo, pesquisador, pensador, sonhador, ser amoroso comprometido com a educação e as causas sociais, com destaque para os mais humildes!
O LAPEPS – Laboratório de Pesquisa em Promoção da Saúde, da UFSC, está conduzindo várias iniciativas em comemoração a data. A mim coube o honroso convite para contar meu encontro com Paulo Freire. Então, aqui estão fragmentos das minhas lembranças. As memórias mais significativas que resistiram ao tempo.
Agradeço a generosidade das pesquisadoras e pesquisadores que foram me buscar no escondidinho da minha vida familiar e sopraram uma chama que esta adormecida, mas não apagada! GRATIDÃO!
Neste depoimento não vou contar a biografia de Paulo Freire, nem sua imensa obra… nem os prêmios e homenagens que recebeu… informações fidedignas estão em muitas fontes de consulta.
Meu depoimento aborda minhas sucessivas aproximações com o pensamento e as propostas de Paulo Freire e que foram despertando minha curiosidade sobre a pessoa e a viabilidade de sua metodologia. Tem a ver com a influência de Paulo Freire sobre a minha jornada enquanto pessoa, profissional e educadora.
Gosto muito desta história! Espero que vocês também gostem!
Sou Rosita Saupe, nasci em Porto Alegre no dia 16 de Agosto de 1942. Paulo Freire já tinha 21 anos. Na minha origem humilde, na rigorosa formação familiar e cristã já encontro proximidade com Paulo Freire… acho, mas não tenho certeza, que passar por experiências semelhantes aproximam as pessoas. Passei dificuldades e carências, mas nunca fome, como a família de Paulo Freire, fortemente atingida pela recessão de 1929.
Os primeiros dias na Escola Católica, aos sete anos, foram de muita ansiedade e deslumbramento… ambos nunca mais me abandonaram.
Aos treze anos precisei começar a contribuir para a renda familiar. A experiência numa floricultura, enchendo envelopes com sementes, mostrou minha dificuldade com trabalho repetitivo, tipo linha de produção! Compreendi que não me ADAPTARIA, palavra bastante explorada por Paulo Freire, quando argumenta que adaptar é aceitar o destino como inexorável, imutável. Propõe AJUSTAR, como situação provisória, espera esperançosa por novas possibilidades e avanços.
Resisti e para me ajudar recebi proposta de auxiliar crianças do meu bairro a fazerem os deveres escolares. Meu primeiro aluno se chamava Roni e com ele aprendi a importância da paciência histórica e que “ninguém sabe tudo, ninguém sabe nada”, cada um sabe alguma coisa e é na troca de saberes que vamos construindo nossa identidade e vão se gerando os temas que consolidam nossa CONSCIÊNCIA!
Trabalhando e frequentando o curso ginasial no Instituto de Educação de Porto Alegre, tive dificuldade em acompanhar algumas disciplinas. Muitas colegas recorreram a professores particulares… eu não tinha esta possibilidade. Então… o conceito de AMOROSIDADE, tão especial na obra de Paulo Freire, se fez presente no meu ITINERÁRIO de superação. Professora Zélia, de Matemática e o professor de Latin, transcenderam suas obrigações e ofereceram reforço em muitas tardes de sábado.
Ao concluir o ensino secundário no Instituto de Educação, meu objetivo era ser professora de história, pois sempre tive muita curiosidade sobre as origens das coisas. Mas, um artigo de jornal intitulado “O Brasil precisa de enfermeiras” (que guardo com muito carinho até os dias de hoje), da saudosa professora Dirce Pessoa de Blum, me convenceu a tentar esta opção. Paulo Freire demorou um pouco mais a descobrir sua verdadeira vocação, educar, conscientizar, num processo de AÇÃO E REFLEXÃO. Concluiu o curso de Direito, mas já nas primeiras causas entrou em conflito ao defender uma das partes achando que a outra também tinha razões ou justificativas.
Em 1960, na coincidência de ter sido definido como ANO FLORENCE NIGHTINGALE, precursora da Enfermagem Moderna, comecei a frequentar o curso na denominada EEPA (Escola de Enfermagem de Porto Alegre) da UFRGS.
O modelo tecnicista, exigente, controlador não impediu que professoras sensíveis percebessem minhas necessidades. Trabalhei durante todo o curso e aprimorei competências. Dra Maria Ignes Ramos da Silva Reginin, enfermeira e professora, me conectou com o conceito de COMPAIXÃO, sempre tão presente na vida e obra de Paulo Freire. O trabalho remunerado permitiu que eu continuasse no curso com dignidade e a aprender além da sala de aula, dos laboratórios e estágios planejados, sem o acompanhamento e proteção de uma supervisora.
Enquanto eu cursava Enfermagem e trabalhava (cuidei em domicílio, participei de campanhas de vacinação e hidratação, cuidei de crianças numa colônia de férias e gerenciei um Pronto Socorro Particular…) Paulo Freire iniciava as primeiras experiências de alfabetização de adultos. Angicos, em 1962, com trezentos trabalhadores rurais é das mais conhecidas. Em Dezembro de 1963 me graduei e no ano seguinte Paulo Freire deixou o Brasil, permanecendo como exilado até 1979.
Nos primeiros cinco anos como Enfermeira… trabalhei cuidando e administrando. Nas instituições nas quais atuei participei também da Educação em Serviço e no convívio com outras categorias profissionais DESVELEI, com maior clareza a diversidade e precariedade das pessoas que cuidam e das que são cuidadas.1
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[NOTA 1: De 1964 a 1969 participei do grupo que abriu o Hospital Fêmina; do grupo contratado para fechar o Hospital Getúlio Vargas para reformas; da implantação da Clínica do Aparelho Respiratório – primeira a utilizar os aparelhos BIRD em Porto Alegre; da implantação da Unidade de Recuperação Pós-operatória do Hospital Cristo Redentor].
Em 1968 fui convidada pela Professora Doutora Eloita Pereira Neves, para participar do grupo de implantação do primeiro curso de Enfermagem em Santa Catarina, na UFSC.
Na mesma época os americanos estavam se preparando para a primeira viagem à Lua. Com o Ato Institucional número 5, meus planos congelaram e os americanos chegaram à Lua antes do que eu e minha família à Florianópolis…graças ao empenho da professora Eloita e do Reitor Dr, Davi Ferreira Lima, em 15 de setembro de 1969 mudei para Floripa.
Mas, mesmo me sentindo bem preparada e com diversidade em minha experiência prática, reconheci que precisava de conhecimentos em Didática e Pedagogia.
Então retornei a Porto Alegre e a UFRGS!
Na Escola de Enfermagem fiz um estágio na disciplina de Fundamentos de Enfermagem e aprendi com a Dra Ida Haunss de Freitas Xavier, o outro lado do processo de ensino e aprendizagem, acompanhando alunos na sala de aula, nos laboratórios e nos campos de estágio… na Faculdade de Educação fiz uma especialização em Metodologia do Ensino Superior. Neste curso fui apresentada às Teorias Pedagógicas, ao Projeto Político Pedagógico, à Psicologia do Ensino e a Paulo Freire! Loureni Ercolani Saldanha e Juracy Cunegatto Marques, são professoras que lembro com muito carinho! Foram responsáveis pelo meu encontro com todo este conhecimento absolutamente novo para mim! Como é importante encontrar boas pessoas e bons professores na nossa vida…fazem toda a diferença!
Fui professora de Fundamentos de Enfermagem por muitos anos e me tornei frequentadora assídua da biblioteca do Centro de Educação. A professora Leda Sheibe foi a amiga que me introduziu aos fundamentos da dialética.2
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[NOTA 2: Em 1970 trabalhei também na Maternidade Carmela Dutra; depois fui chefe do Departamento de Enfermagem por cinco anos; primeira presidente do COREN-SC; primeira diretora de Enfermagem do Hospital Universitário…muitas lembranças, outras histórias e estórias!]
Enquanto continuava me atualizando em Enfermagem e seus fundamentos teóricos e práticos, os livros sobre Educação foram ocupando cada vez mais espaço na minha biblioteca. Fui aluna da primeira turma de Mestrado em Enfermagem da UFSC e minha dissertação avaliou o Curso de Graduação.
A obra de Paulo Freire estava censurada. Somente em 1988, ao iniciar o Doutorado em Enfermagem na Universidade de São Paulo, onde frequentei disciplinas na Faculdade de Educação também, consegui adquirir Pedagogia do Oprimido. Que leitura perturbadora! Quando cheguei a última página pensei: linda utopia, o autor é um sonhador, idealista, proposta inviável!
Minha tese de Doutorado leva um título bem apropriado para a época do gerúndio: “Ensinado e Aprendendo Enfermagem: a transformação possível”, tendo como referencial as Teorias Pedagógicas (dados coletados na UFSC).
Voltando do Doutorado comecei a fazer pequenas experiências de Círculo de Cultura com alunos da graduação. Dava muito certo enquanto o objetivo era a troca de Temas Geradores pautada pelas origens e experiências de vida. Sempre havia alunos que já atuavam na enfermagem e os novatos ficavam encantados com as vivências compartilhadas. Mas, quando entravamos no conteúdo propriamente dito e mais ainda na avaliação… apareciam as dificuldades. Numa experiência solicitei que os alunos escrevessem numa folha seu nome e o conceito que mereciam na disciplina. Todos se atribuíram A! Na sequência pedi que cada um atribuísse o conceito ao seu colega ao lado, sem identificar. Nesta etapa alguns seriam reprovados! Eu pensava: a Pedagogia do Oprimido foi proposta para alfabetização de adultos, temos um longo caminho. Minha CONSCIÊNCIA INGÊNUA tem me dado bastante decepção!
Na época não encontrei publicações sobre experiências usando Paulo Freire na educação formal… deixei de lado na minha prática docente, mas segui lendo, estudando e atenta a alguma informação. O referencial teórico que embasou minha Tese de Doutorado continuou fundamentando minha prática pedagógica, Dermeval Saviani, Jose Carlos Libâneo, Maria Vitoria Benevides, Jürgen Habermas e tantos outros, iluminavam o meu pensamento.
A oportunidade chegou na satisfação de ser escolhida por dois mestrandos para orientar suas dissertações de mestrado: Ivonete Heidmann e Antonio de Miranda Wosny. Ivonete estudou a “Participação Popular na busca de uma melhor qualidade de vida” e Toni elaborou, junto aos moradores do bairro Sol Nascente, uma proposta numa perspectiva problematizadora de educação e saúde…o caminho foi iniciado…
A partir daí participei de incontáveis Círculos de Cultura em muitas universidades como criadora de Grupos de Pesquisa3, animadora de grupos, orientadora de pesquisas, bancas de Trabalhos de Conclusão de Cursos na Graduação, Especialização, Mestrado, Doutorado!
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[NOTA 3: O primeiro grupo que criei está funcionando até hoje na UFSC… é o EDEN – Educação em Enfermagem]
E foi tudo um mar de flores? Sucesso garantido? NÃO! As dificuldades foram de toda ordem.4
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[NOTA 4: Considero a sequência do meu depoimento a parte mais importante de tudo relatado neste documento]
No começo não tínhamos experiência acumulada que permitisse a crítica, havia muito entusiasmo, dedicação e empenho para dar o mais certo possível e íamos contornando as dificuldades, fazendo ajustes necessários. O rigor cientifico e o respeito pelas pessoas eram guias da ação.
Os Círculos de Cultura reúnem pessoas que tem algum problema existencial que as aproxima e agrega. Mas, a proximidade, o convívio e o estímulo por parte do animador para que exponham os temas que as mobilizam pode fazer emergir também disputas, rivalidades, pequenezas humanas… e podem destruir o grupo. Com o tempo também fui captando um certo desmerecimento por parte de alguns alunos que optaram por usar a metodologia problematizadora de Paulo Freire como se fosse mais fácil, exigisse menos estudo, gerando um aligeiramento inaceitável na condução do Círculo de Cultura … Não Passarão!
Fundamentada em toda a minha experiência e prática registro algumas sugestões:
- paralelamente ao estudo do Referencial Freireano, estudem as teorias de como se formam, se desenvolvem, evoluem e como falecem os grupos. Desde antes do Homem Sapiens até os de internet, dando ênfase aos grupos populares;
- compreendam que nenhuma teoria está acabada! E aqui, me inspiro nos ensinamentos da Dra Wanda de Aguiar Horta (minha professora no Mestrado da UFSC), que propôs a Metodologia de Enfermagem fundamentada na Teoria das Necessidades Humanas Básicas: todo conhecimento precisa ser revisto a luz da experiência e da evolução da ciência … precisa acompanhar o tempo em que está sendo aplicada. É vivendo a teoria na prática que seus limites e possibilidades são evidenciados e o conhecimento avança;
- um aspecto que sempre me deixou desconfortável foi o tempo de vida dos grupos organizados pelos alunos. Em sua maioria partiam de necessidades das comunidades populares, da motivação dos moradores para a participação e, quando os dados apresentavam a necessária saturação, o aluno se retirava, deixando alguma liderança responsável pela continuidade dos encontros, das discussões e encaminhamentos das reinvindicações… em outras situações o grupo era organizado a partir de necessidades do aluno… de perguntas para as quais ele queria resposta… Defendo que os estudos, sempre que possível sejam inseridos em grupos já organizados e o aluno se proponha a auxiliar no alcance dos objetivos. Mas, quando esta situação não se apresente, que haja um esforço para consolidar o grupo para que a conclusão da coleta de dados não decrete a morte do grupo;
- sugiro que sempre que um estudo utilize a proposta problematizadora, o nome de Paulo Freire já se apresente no título. É a mínima homenagem que podemos prestar ao autor e sua obra;
- uma metanalise da educação popular em saúde na perspectiva Freireana seria uma homenagem da maior relevância nas comemorações deste centenário!
- Não posso deixar de referir os tempos sombrios que estamos vivendo. Espanto pelo choque ao compreender que nem a ciência biológica, nem a ciência política, e muito menos o processo civilizatório estavam no patamar de desenvolvimento que eu acreditava. Ansiedade pela roleta russa na qual o vírus nos colocou. Tristeza pelas mortes e pelo luto das famílias. Perplexidade pelos desgovernos, pela falta de empatia, pela mentira e justificativas totalmente desprovidas de um mínimo de moralidade, lógica e racionalidade. Tudo muito estranho! Difícil de compreender!
Mas é preciso ESPERANÇAR!
E para renovar a ESPERANÇA peço ajuda a Ariano Suassuna, quando diz:

E também a inspiração de AMANDA GORMAN. Em “A colina que escalamos” (tradução livre de Caetano Galindo) ela aponta:

Rosita Saupe, que agora é Rosita Morgado, em Curitiba, Janeiro de 2021, Segundo ano da Pandemia e do Desgoverno!5
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[Nota 5: Obrigada Marilene Schmarczek, colega de quarto na Residência de Enfermagem da UFRGS, que nunca me esquece e ajudou a resgatar nomes importantes citados neste DEPOIMENTO, renovando memórias compartilhadas!]